Reinaldo José Lopes
Do G1, em São Paulo
Donald Henderson, que completa 81 anos no mês que vem, venceu a guerra contra a varíola, mas admite que essa talvez seja a última doença infecciosa a ser realmente erradicada no planeta. O epidemiologista americano, pesquisador do Centro de Biossegurança da Escola Médica da Universidade de Pittsburgh, trabalhou décadas junto com a Organização Mundial da Saúde usando vacinas para enfrentar epidemias e diz que, embora eliminar a gripe ou outras doenças muito comuns seja um objetivo quase impossível, ainda dá para fazer muito com a ajuda de imunizações.
Com os avanços recentes na pesquisa sobre os vírus influenza, por exemplo, ele prevê que em cerca de dois anos será possível obter uma vacina relativamente polivalente contra a gripe, impedindo que sejamos pegos de surpresa por um novo vírus a cada ano. Em entrevista ao G1 por telefone, Henderson diz que a melhor comparação histórica com a pandemia atual de gripe é o ano de 1957 -- que presenciou um surto relativamente leve do vírus -- e defendeu a política de só aplicar Tamiflu ou outros antivirais em pacientes graves da doença. Confira a conversa abaixo.
G1 - A humanidade teve um sucesso tremendo no século XX em praticamente eliminar doenças infecciosas mortais, e o trabalho do sr. é uma prova disso. O sr. vê chances de erradicar doenças infecciosas importantes que ainda estão por aí, como a gripe ou a Aids?
Henderson - Francamente, tenho dúvidas de que isso seja possível. Vai ser muito difícil erradicar realmente outras doenças, como conseguimos fazer com a varíola [nos anos 1970]. Ainda acho que podemos fazer muita coisa com a ajuda de vacinas, mas a erradicação é um objetivo ambicioso demais.
Vejamos, por exemplo, o caso da poliomielite. O Brasil fez um trabalho fantástico contra essa doença, sou testemunha disso, mas ainda continuamos lutando com ela em outros lugares do mundo. E não é por falta de dinheiro. Foram investidos US$ 6 bilhões nos projetos contra a pólio, mas alguns problemas são difíceis de superar.
Fazendo uma comparação com a varíola: a pólio exige várias doses para uma boa imunização, enquanto a varíola só precisa de uma. Existem três cepas principais da poliomielite, enquanto havia apenas uma da varíola. E há o problema da estabilidade da vacina em ambientes tropicais. Você precisa de refrigeração o tempo todo, enquanto a vacina da varíola era muito mais estável.
G1 - Levando esses fatores em conta, o sr. acha que dá para melhorar a maneira como a vacina da gripe é fabricada e distribuída hoje, para evitar que o mundo seja pego de calças curtas por um novo vírus, como ocorreu neste ano?
Henderson - Eu acho que dá, e esses passos estão sendo dados. O grande problema é que até 2003 ou 2004 havia relativamente muito pouca pesquisa sobre os vírus influenza. Nós ainda estamos usando uma técnica muito velha para produzir vacinas, com a ajuda de ovos de galinha -- da mesma maneira que se fazia há 50 anos.
É possível, por exemplo, produzir as vacinas usando cultura de tecidos em laboratório, o que seria muito mais rápido. Em segundo lugar, precisamos desenvolver vacinas que nos protejam de diferentes cepas do vírus da gripe. Com a velocidade de mutação do vírus, muitas vezes você acaba criando uma vacina que tem uma cara boa no laboratório mas, ao ser aplicada, só protege de 30% a 40% das pessoas. Dá para fazer melhor do que isso usando, por exemplo, adjuvantes -- substâncias que fortaleçam o estímulo que a vacina causa ao sistema de defesa do corpo.
Eu acho que dentro de não mais do que dois anos vamos ver grandes mudanças nessa área, com a criação de vacinas que cubram, por exemplo, todos os tipos de H1N1, ou mesmo todos os tipos de influenza. Por meio de manipulação genética, vai ser possível criar antígenos [moléculas que estimulam o sistema imune a produzir anticorpos] que correspondam a todas as cepas do vírus. Existem pontos comuns entre os vários vírus -- é uma questão de desenhar o antígeno de forma precisa.
G1 - O Brasil tem visto um número considerável de mortes causadas pela nova gripe entre pessoas relativamente jovens e saudáveis. Até que ponto isso é preocupante, na sua opinião?
Henderson - Mesmo quando você considera a gripe sazonal [normal], algumas pessoas saudáveis ficam muito doentes e morrem. Numa gripe sazonal, nós podemos ver taxas de infecção que vão de 10% a 15% da população, enquanto a nova gripe parece estar mais para proporções entre 25% e 30%. Isso significa que, naturalmente, você vai ver mais casos de todos os tipos -- inclusive os mais graves.
Os dados que vi até agora, vindos dos EUA, do México e da Europa, ainda mostram que a predominância de mortes vem de quem já tem alguma complicação, como problemas pulmonares sérios, obesidade, diabetes severa e sistema imune comprometido.
G1 - O governo brasileiro determinou que o Tamiflu e drogas antivirais similares sejam usadas apenas em pacientes de casos graves da nova gripe. Como a droga é mais eficaz nas primeiras 48 horas de uso, não se trata de uma medida perigosa para a saúde pública?
Henderson - Primeiro, é importante lembrar que outros países adotaram essa medida. E ela faz certo sentido. Tudo o que não queremos é chegar a cepas de vírus resistentes a esses medicamentos, e é o que vai acabar acontecendo se o uso se tornar maciço.
Em segundo lugar, a maioria dos casos é, inegavelmente, bastante leve nos sintomas. Poderíamos, por exemplo, tentar restringir o uso dos remédios aos doentes graves e à família desses doentes. Mas, mesmo que tivéssemos dinheiro e capacidade de produzir todos esses remédios -- coisa que não temos --, ainda acho que não seria sábio, por causa do risco da resistência do vírus.
G1 - Como é que o senhor avalia a resposta da OMS e da comunidade internacional ao desafio da pandemia?
Henderson - Creio que, no geral, todos estão fazendo um bom trabalho. Houve um certo mal-entendido no começo, porque as pessoas temiam que o vírus fosse parecido com o da gripe aviária, que pode até matar metade dos infectados, o que seria muito mais sério, ou com a da gripe espanhola de 1918.
Na verdade, estamos lidando com uma epidemia muito mais parecida com a de 1957, que também causou preocupação no mundo inteiro, mas foi relativamente bastante leve. Nos EUA, por exemplo, quando se percebeu que a transmissão era sustentada em 1957, nem as aulas foram canceladas no começo do ano letivo, que era em setembro. E o resultado não teve nada de catastrófico, pelo contrário.
Acredito que a situação atual é mesmo semelhante à de 1957. É como se houvesse uma tempestade cheia de relâmpagos num momento, e de repente o sol volta a brilhar logo depois. A taxa de infecção pelo vírus atual talvez continue relativamente alta por dois ou três anos, e então ele ficará idêntico ao da gripe sazonal. Creio que ele será um problema muito menor no inverno deste ano no hemisfério Norte, porque muitas pessoas já estarão protegidas, talvez até 3% da população, evitando o espalhamento dele.
Fonte: G1