A propósito do debate sobre a retirada de símbolos religiosos das repartições públicas, alerto para a interpretação equivocada daqueles que propugnam tal medida.
O Estado é laico, isso é o óbvio, mas a laicidade não se expressa na eliminação dos símbolos religiosos, mas na tolerância aos mesmos. Em um país que teve formação histórica-cultural cristã é natural que haja na parede um crucifixo e isso não configura discriminação alguma.
Ao contrário, o pensamento deletério e a ser combatido é a intolerância religiosa que se expressa quando alguém desrespeita ou se incomoda com a opção e o sentimento religioso alheio, o que inclui querer eliminar os símbolos religiosos.
Nessa toada, como prenuncia o poema “No caminho, com Maiakóvski”, o culto e devoção terão que ser feitos em sigilo, sempre sob a ameaça de que alguém poderá se ofender com a religião do próximo. Nesse passo, eu, protestante e avesso às imagens (é notório o debate entre protestantes e católicos a respeito das imagens esculpidas de Santos), tive a ocasião de ver uma funcionária da Vara Federal onde sou Titular colocar sobre sua mesa uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida. Vi tal ato com respeito, vez que cada um escolhe sua linha religiosa.
A imagem não me ofendeu, mas sim me alegrou por viver em um país onde há liberdade de culto. Quando vejo o crucifixo na sala de audiências não me ofendo por (segundo minha linha religiosa) haver ali uma “imagem esculpida”, mas reconheço nele a recordação de nossa natural e abençoada diversidade religiosa.
O crucifixo nas Cortes é, por sinal, uma salutar advertência sobre os erros judiciários e os riscos de os magistrados atenderem aos poderosos mais do que à Justiça. Além disso, se a medida for levada a sério, deveríamos também extinguir todos os feriados religiosos, mudar o nome de milhares de ruas e municípios e, ad reductio absurdum, demolir simbolos e imagens, a exemplo, que identificam muitas das cidades brasileiras, incluindo-se no cotidiano popular de homens e mulheres estratificados em variados segmentos religiosos.
Ao meu sentir, as pessoas que tentam eliminar os símbolos religiosos têm, elas sim, dificuldade de entender e respeitar a diversidade religiosa. Então, valendo-se de uma interpretação parcial da laicidade do Estado, passam a querer eliminar todo e qualquer símbolo, e por consequência, manifestação de religiosidade. Isso sim é que é intolerância.
Os católicos que começaram este país deixaram sua fé cristalizada. Querer extrair tais vestígios afronta o nosso legado histórico. Em certo sentido, querer sustentar que o Estado é laico para retirar os Santos e Cristos crucificados não deixaria de ser uma modalidade de oportunismo de quem não sabe conviver com a religião dos outros.
Todos se recordam do lamentável episódio em que um mau religioso chutou uma imagem de Nossa Senhora. Não é menos agressivo não chutar a Santa mas valer-se do Estado para torná-la uma refugiada, uma proscrita. Indo além, tal viés ataca todos os símbolos de todas as religiões, menos uma. Sim, uma: a “não religião”, e é aqui que reside meu principal argumento contra a moda de se atacar a presença de símbolos religiosos em locais públicos.
A recusa à existência de Deus não é uma opção neutra, mas uma nova modalidade religiosa. Se por um lado temos um ateísmo como posição filosófica onde não se crê na(s) divindade(s), modernamente tem crescido uma vertente antiteísta.
Esta nova vertente tem seus profetas, seus livros sagrados e dogmas, faz proselitismo, busca novos crentes (que nessa vertente de fé são os que optam por um credo que crê que não existe Deus algum). Como em todos os credos, há ateus educados e cordatos, e outros nem tanto. Há uma linha intolerante e, como ocorre em todas as religiões iniciantes ou pouco amadurecidas, mostra-se virulenta e desrespeitosa no ataque às demais.
Ele está envolvido, como qualquer profeta, na profusão de suas ideias, fazendo palestras e livros, concedendo entrevistas e fazendo suas “cruzadas”.
A Campanha Out é uma proselitista em favor do ateísmo, tem seu símbolo (o “A”escarlate) e produz camisetas, jaquetas, adesivos, e broches vendidos pela loja online, cuja renda se destina à Fundação Richard Dawkins para a Razão e a Ciência (RDFRS).
Algo não muito diferente de outros profetas e credos. Naturalmente, Dawkins e seus seguidores têm todo o direito de pensarem e professarem qualquer fé ou a falta dela, mas só porque não creem em um Deus, não estão menos sujeitos aos valores, princípios e leis que, se não nos obrigam à fraternidade, ao menos nos impõem a respeitosa tolerância.
Vale lembrar que católicos, judeus, evangélicos, espíritas e muçulmanos, e bom número de ateus gastam suas energias ajudando os necessitados. Nosso país, salvo raras e desonrosas exceções, é palco de feliz tolerância religiosa.
A eliminação dos símbolos religiosos atende aos desejos de uma vertente religiosa perfeitamente identificada, e o Estado não pode optar por uma religião em detrimento de outras.
A solução correta é tolerar e conviver com as diversas manifestações religiosas, incluindo Jesus, Buda, Maomé, Allan Kardec, São Jorge etc., sem que ninguém deva se ofender com isso. Por fim, acaso fosse possível uma opção, não poderia ser pela visão da “minoria” mas da “maioria”. O “respeito às minorias” já está razoavelmente assimilado, mas isso não inclui o direito à tirania da minoria.
Em suma, espero que deixem este crucifixo, tão católico apostólico romano quanto é, exatamente onde ele está.
A laicidade aceita todas as religiões ao invés de persegui-las ou tentar reduzi-las a espaços privados.
Fonte: www.cristianismohoje.com.br
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